Igor Rodrigues
Coisas Acesas por Dentro
IGOR RODRIGUES
Em sua prática artística, Igor Rodrigues propõe uma discussão acerca dos corpos negros, reivindicando a eles seu lugar de protagonismo, não somente na sociedade, mas dentro do próprio meio artístico. Com uma prática decolonial, suas pinturas pretendem romper com o imaginário de violência que foi perpetuado historicamente e que ainda hoje implicam como esse grupo social é percebido socialmente. Para isso, o artista se vale de um exercício de colocar esses corpos em uma perspectiva de liberdade e cura.
Psicólogo de formação, Igor entende que criar um lugar de reimaginação de mundos para a população negra se torna cada dia mais urgente. Em 2022 o Ministério da Saúde relatou que o índice de transtornos mentais entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior do que entre brancos. Os dados mostram ainda que esses índices de risco aumentaram 12% entre a população negra nos últimos anos, enquanto permanecendo estável entre pessoas brancas. Entender esses números é primordial para que a sociedade compreenda que há implicações diretas e indiretas que corroboram para que esses números tenham uma discrepância tão grande entre grupos sociais distintos, entendendo que o racismo estrutural é a principal delas.
Durante a construção de sua primeira exposição individual em São Paulo, Igor criou uma série de pinturas – em sua grande maioria obras inéditas – que vão lidar com essas noções de recriação de imaginários a partir de uma narrativa que parte das discussões acerca das invisibilizações. Usa também de uma leitura crítica do colonialismo e seus efeitos, bem como à tentativa de questionamento da sociedade, o que, por sua vez, está ligado à possibilidade de surgimento de um novo protagonismo por parte da população negra, novos processos de elaboração de conhecimento sobre si e sobre seus direitos, e novos caminhos políticos.
Por isso, partimos da série Me Olhe nos Olhos para traçar esse caminho proposto pelo artista. Nela, observamos Igor inserir uma série de recursos que expandem a noção da pintura, entre eles a inserção de textos. Mas a proposta mais direta que alude ao próprio título da série é a construção dos olhos das personagens feitas por fragmentos de espelhos, o que me faz pensar em duas possibilidades de leituras sobre esses trabalhos.
Primeiramente, o artista traz diversos questionamentos sobre sua negritude: “O que me torna negro? É possível medir minha negritude?” quando ele se coloca diante do próprio trabalho, questionando suas temáticas e propostas discursivas. Já numa segunda leitura, entendo esse trabalho como um diálogo ativo com seu espectador que tem que encarar os olhos das pinturas de forma direta, estabelecendo ali uma relação seja de afeto ou de distanciamento de todas as implicações que a imagem carrega.
Ao longo da exposição vamos perceber que Igor utiliza de recursos que, a princípio, parecem bastante literais para depois percebermos que existem diversas camadas interpretativas para seus trabalhos. Em Lágrimas Negras esse recurso está bem presente. As pinturas carregam fios de conta que caem dos olhos das personagens que em um primeiro momento podem ser compreendidas como um choro ou uma tristeza. E não deixam de ser. Mas como na letra de Jorge Mautner, a tristeza funciona como o outro lado da moeda da beleza. Ou no caso, como se Igor nos dissesse que para que a beleza seja aflorada, ou acesa, é preciso um mergulho dentro de nossas profundezas. E assim chegamos no título da exposição. Coisas Acesas por Dentro lida com esse processo de cura de uma população que sempre esteve subjugada e que hoje busca reconstruir um lugar de protagonismo, de afetos, de acessos, de reimaginar-se livre.
Parte disso pode ser compreendida na pintura Nós, um grande painel que ocupa o fundo da galeria. Nela observamos um casal que ora se encontra, ora se separa, numa dança coreografada dessa busca por novas formas de se perceber no mundo. Se em algum momento da história foi nos tirado não somente a dignidade, mas também como estabelecemos nossos afetos, como é possível resgatar formas de criar vínculos que não perpetuem mais lugares de violência criado para nós?
Ao mesmo tempo que Igor traz todos esses questionamentos para o público, ele vai incutindo por uma jornada de recriar esses imaginários. E um desses lugares que o artista encontrou para trazer algumas respostas foi a valorização da beleza como afirmação da autoestima. No entanto, as pinturas do artista trazem uma vivacidade de cores. Suas obras, em todas as suas cores vibrantes, destinam-se a iluminar os tópicos que ele quer discutir.
A maioria das obras de Igor retrata mulheres em poses poderosas e vestidas com roupas luxuosas e coloridas. Sim, a moda é uma discussão importante nas obras do artista, de forma que esse é um dos recursos de resgate de um empoderamento. Essa discussão estética vem sendo retomada por uma nova geração que busca inserir a população negra em uma perspectiva contemporânea de que roupa é comportamento. Por isso, faz parte de uma construção de imaginário social, o que me faz lembrar o importante trabalho que o fotógrafo malinês Seydou Keïta realizou ao registrar os costumes do Mali em uma transição do campo para a cidade e também ao longo de sua independência, que ocorreu em 1960. Um registro do tempo capaz de ressignificar como percebemos o mundo e especialmente como nos percebemos em relação às diferenças.
Dessa forma, o trabalho de Igor Rodrigues estabelece esses paralelos frente à história que nos foi contada e a que precisa ser reescrita a partir de agora. Se ao longo da exposição ele nos coloca diante de tantos desejos de mudanças, qual o papel que assumimos para que essas imagens ocupem seus lugares de liberdade em um mundo que ainda insiste em oprimi-las? Se Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento, Igor aponta que o caminho agora é de que as belezas sejam coisas acesas por dentro. E que assim seja!
Carollina LaurianoCuradora